domingo, 19 de dezembro de 2010

ROSA - Sentidos


"Zé Bebelo podia pautar explicação de tudo: de como a gente ia alcançar os hermógenes e dar neles grave derrota; podia referir tudo que fosse de bem se guerrear e reger essa política, com suas futuras benfeitorias. De que é que aquilo me servisse? Me cansava. E vim vindo, para a beira da vereda. Consegui com frio, esperei a escuridão se afastar. Mas, quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal. Um buriti - tetéia enorme. Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os antigos, porque num homem que eu nem conheci - aquele Siruiz - eu estava pensando. Versos ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável valor:


Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p'ra comprar o fim do mundo
no meio do chapadão.

Urucúia - rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.

Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão...

Mas estes versos não cantei pra ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso - o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia" J.G.Rosa, Grande sertão: veredas, p.333-334.

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