domingo, 12 de dezembro de 2010

Bergson - As Duas memórias


"Há, como dizíamos duas memórias profundamente distintas: uma, fixada no organismo, não é senão o conjunto dos mecanismos inteligentemente montados que asseguram uma réplica conveniente às diversas interpelações possíveis. Ela faz com que nos adaptemos à situação presente, e que as ações sofridas por nós se prolonguem por si mesmas em reações ora efetuadas, ora simplesmente nascentes, mas sempre mais ou menos apropriadas. Antes hábito do que memória, ela desempenha nossa experiência passada, mas não evoca sua imagem. A outra é a memória verdadeira. Coextensiva à consciência, ela retém e alinha uns após outros todos os nossos estados à medida que eles  se produzem, dando a cada fato seu lugar e consequentemente marcando-lhe a data, movendo efetivamente no passado definitivo, e não, como a primeira, num presente que recomeça a todo instante. Mas, ao distinguir profundamente essas duas formas de memória, não havíamos mostrado seu vínculo. Acima do corpo, com seus mecanismos que simbolizam o esforço acumulado das ações passadas, a memória que imagina e que repete pairava, suspensa no vazio.  Mas, se nunca percebemos outra coisa que não nosso passado imediato, se nossa consciência do presente é já memória, os dois termos que havíamos separado de início irão fundir-se intimamente. Considerado esse novo ponto de vista, com efeito, nosso corpo não é nada mais que a parte invariavelmente renascente  de nossa representação, a parte sempre presente, ou melhor, aquela que acaba a todo momento de passar. Sendo ele próprio imagem, esse corpo não pode armazenar as imagens, já que faz parte das imagens; por isso é quimérica a tentativa de querer localizar as percepções passadas, ou mesmo presentes, no cérebro: elas não estão nele; ele é que está nelas. Mas essa imagem muito particular, que persiste em meio às outras e que chamo meu corpo, constitui a cada instante, como dizíamos, um corte transversal do universal devir. Portanto, é o lugar de passagem  dos movimentos recebidos e devolvidos, o traço de união entre as coisas que agem sobre mim e as coisas sobre as quais eu ajo, a sede, enfim, dos fenômenos sensório-motores" Henri Bergson, Matéria e memória, p. 176-177.

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