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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

mudança

Este espaço ficou para a estrada.
As coisas que anotava aqui, agora rabisco em www.imagina2013.blogspot.com.

Dromos


Saudade
Imensa saudade da estrada
Imagem do caminho ladeado de esfinges
Quando estava ao seu lado
Estradas

quarta-feira, 2 de março de 2011

Drummond

A flor e a luz (imagem de abalosismico.blogspot.com)
A FLOR E A NÁUSEA
 
Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo? 

Posso, sem armas, revoltar-me'?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse. 

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. 

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem. 

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima. 

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu. 

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor. 

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Do sublime oculto

Imagem de casaalmarespachwork.com

Maçã
Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão [placentário

És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples 
Ao lado de um talher 
Num quarto pobre de hotel.

Manuel Bandeira, 25/2/1938.

Primeiro peço desculpas por quebrar o "cotovelo" da primeira estrofe (não consegui mantê-lo íntegro). Depois, gostaria de registrar aqui a sensibilidade e o arsenal teórico com que David Arrigucci Jr analisa esse poema de Bandeira em Humildade, Paixão e Morte: a poesia de Manuel Bandeira, Companhia das Letras, 1990. Da descrição da "natureza morta" da poesia como pintura que fala para olhos mudos aos arquétipos da vida e da morte e do amor divino. A simplicidade que se concebe como conhecedora do fato de que esconde o complexo da vida, infinitamente. "O infinitamente grande é visto na perspectiva do infinitamente pequeno: o maior dos mistérios, o da vida, se concentra numa parte ínfima da fruta. Nas pequenas pevides se oculta o sublime". "Assim, na maçã se encerra uma lição de vida e de poesia, pois imitando-a, se reconhece um ideal de estilo na simplicidade natural. E por ela, por fim se entende que a poesia, como a natureza, ama ocultar-se".

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Individuação e totalidade





"(...) e o fim de nossa viagem será chegar ao lugar de onde partimos.
E conhecê-lo, então, pela primeira vez", T. S. Eliot.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Pasta A-Z do inventário das ideias: a razão subversiva

Gerais de Minas Gerais
A Megera cartesiana
Sei que são artimanhas do demo, mas sinto que preciso, antes de inventariar imagens, inventariar ideias. Insisto e não me arrisco: eis a verdade. Vou: a) é preciso separar o caos da ordem; b) há algo no discurso hegemônico que esconde a fala subjugada; c) há muita usurpação cultural, sem falar das outras modalidades; d) não há original, mas há muitas cópias; de algumas se diz "autenticadas" ou até, descaradamente, autênticas; e) o homem está certo de que tirou o pé da floresta e isso tem vários nomes; f) só vamos até o Enuma elish e, depois, à Teogonia; a Babilônia é uma fronteira; g) não existe mais história das mentalidades; h) existem a memória, a história e o esquecimento; i) o tempo está aprisionado no espaço vivido ou é uma dimensão do espaço; j) existem duas metafísicas; k) Deus e o Diabo estão no meio da rua e estão com a firme disposição de resolver tudo na faca, na mão; l) o autor é o seu estilo; m) o autror é um espelho; n) o autor é a recepção que dele se faz; o) o teatro de Lorca une todas as artes; p) a forma é transformável e pode verter-se no seu contrário; q) a imaginação é a louca da casa do espírito; r) os nuers  são o povo da vaca; s) as pessoas não estão nem aí; t) são invenções, constructos ideológicos: as nações, os negros, o Ocidente e o Oriente, os sertões, a ciência, a ordem, entre outros; u) há coisas sem nome e há nomes sem coisa; v) muitos milhões de anos se passaram entre a "pré-história" e a "história"; w) Mário chamou Alencar de "meu irmão"; x)  Rosa concebe o sertão como um estado do espírito; y) mediação e trajetória das imagens; z) a história é única, é verdade, mas ocultamente.

Sertão: região imaginada e mítica

Residências na cidade de Serra das Araras-MG
La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers de forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste como la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
– Et d'autres, corrompus, riches et triomphants.

Ayant l'éxpansion des choses infinis,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
 Qui chantent les transports de l'esprit et des sens. 

                                                                                                   CHARLES BAUDELAIRE
           
AS TRAJETÓRIAS ANTROPOLÓGICAS DAS IMAGENS: O SERTÃO COMO REGIÃO IMAGINADA E MÍTICA.

Introdução

Neste paper pretende-se esboçar uma primeira tentativa de ordenação dos conceitos relacionados à construção do espaço-sertão como região imaginada, a partir, principalmente, de três pontos de vista: i) o pensamento social brasileiro, dos chamados intérpretes do Brasil (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Claude Lévi-Straus e Roger Bastide, entre outros) até estudos mais recentes, de Mariza Peirano, Nísia Trindade, Candice Vidal e Souza, Selma Sena, entre outros); ii) os estudos do imaginário, especialmente com base em Gilbert Durand e iii) a narrativa literária de João Guimarães Rosa, especialmente o romance Grande sertão: veredas, além dos prefácios de Tutaméia e fragmentos de entrevistas concedidas pelo autor a Günter Lorenz e ao seu tradutor italiano.
 Os conceitos serão aplicados à constelação de imagens relacionadas ao espaço-sertão enquanto narrativa, numa linha interpretativa de Grande sertão: veredas que, segundo Wille Bolle se alinha com o que ele chama de “interpretações esotéricas, mitológicas e metafísicas” (BOLLE, 2004, p.20). Assim, tenta-se aqui um alinhamento com os precursores dessa tradição de leitura: Consuelo Albergaria (O Bruxo da linguagem no grande sertão, 1977), Francis Utéza (JGR: Matafísica do grande sertão, 1994), Kathrin Holzermayr Rosenfield (Desenveredando Rosa: ensaios sobre a obra de J.G.Rosa, 2006 e Grande sertão: veredas – roteiro de lietura, 2008) e Maria Zaira Turchi (Literatura e antropologia do imaginário, 2003). Este alinhamento é preliminar e não deve de forma alguma excluir outras perspectivas de leituras, especialmente aquela identificada por Bolle (2004) como  “interpretações, sociológicas, históricas e políticas”, como já se mencionou no parágrafo anterior.
Pretende-se então propor uma leitura do “sertão” roseano como espaço imaginado e definir seus limites, as trajetórias antropológicas das imagens que o constituem, definir seus limites imaginários, origens míticas e materiais, sempre a partir da fala do ex-jagunço Riobaldo e, com apoio do método da mitocrítica e da mitanálise, propor uma topoanálise imaginária desse espaço.


O Sertão no pensamento social brasileiro

Residências na cidade de Serra das Araras-MG

Aqui são considerados quatro momentos igualmente importantes para a compreensão das dimensões do “sertão”: a) o dos primeiros relatos de viajantes, de onde derivam os primeiros registros do termo, geralmente em oposição ao litoral; b) o dos textos literários, em que o sertão aparece, especialmente a partir das produções do Romantismo brasileiro, como espaço nacional primordial; c) os ensaios dos chamados intérpretes do Brasil, já mencionados e que, num maneirismo entre literatura e “ciência”, marcaram a leitura da brasilidade até principalmente os anos finais da primeira metade do século XX e d)  o do discurso propriamente sociológico produzido após a consolidação das Ciências Sociais no Brasil, a partir da Universidade de São Paulo, com apoio de professores estrangeiros, como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, entre outros, dos quais foram alunos Florestan Fernandes, Antonio Candido, entre outros.
 Estudos recentes, dos quais se podem destacar os trabalhos de Mariza Peirano, Nísia Trindade Lima, René Marc, Selma Sena, Candice Vidal e Souza, Eduardo Viveiros de Castro e Roberto DaMatta, entre outros, apontam para uma recorrência nessas produções intelectuais daqueles quatro momentos históricos: a interpretação dualista da brasilidade, que estaria fundada na construção da necessidade de afirmação de um determinado discurso sobre o que seria, ou deveria ser, o Brasil. Na construção desse discurso hegemônico, que parte da oposição entre litoral e interior e se desdobra em outras, como civilização/barbárie, cultura/natureza, urbano/rural, cidade/campo, entre outras, além do alinhamento com a tradição do processo civilizatório ocidental, verifica-se a segregação ou isolamento de determinadas áreas do território, compreendidas como não representativas do Brasil que se queria projetar. Assim, o sertão é caracterizado como paisagem inóspita, despovoada, lugar de violência e atraso destinado ao desaparecimento ou à superação pelo avanço do “progresso” ou da “civilização”. Para Sena (2003), essa visão dualista concebia, finalmente, “a ideia de que o Brasil comportava em seu interior duas sociedades diferentes e antagônicas” (Sena, 2003).
Essas interpretações dualistas do Brasil, embora mantidas mesmo após o amadurecimento e a consolidação das Ciências Sociais no Brasil, começaram a sofrer críticas, especialmente a partir dos anos de 1970 e 1980, quando produções de estudiosos do assunto tentavam demonstrar o caráter ideológico e a insuficiência interpretativa dos argumentos daquela tradição. Nessa nova perspectiva, o “sertão” passa a ser concebido como personagem de um mito da brasilidade, que serviu como necessário em determinado momento à sua interpretação, mas que exigia a sua superação por postulados interpretativos que , de certa forma, corrigissem a ideia dos “dois brasis”. De acordo com Sena (2003), a interpretação dualista foi desmontada inicialmente pela economia e pela sociologia: “agora o atrasado e o moderno não se justapunham numa relação estanque, mas se articulavam estruturalmente, de sorte que o atraso passava a ser condição de reprodução do moderno, ao invés de obstáculo à sua constituição” (Sena, 2003, p.29).
Essas formulações contemporâneas sinalizam para a necessidade de concepção integral do Brasil como uma multiplicidade intercambiável de fatores e aspectos que podem ser encontrados em qualquer parte do território. Aspectos como a violência podem sem encontrados tanto na cidade como no campo, restando impossível e desnecessária essa marcação dicotômica de lugares, enfim complementares e “inventados” discursivamente, com base na racionalidade ocidental, talvez incapaz de criar significados sem recorrer ao mito.


O Sertão nos campos da Teoria do Imaginário 

Andalécio cultivou terras à margem do Rio São Francisco
Preliminarmente, este texto i) parte do pressuposto de que o homem é um animal simbólico e ii) considera o imaginário, individual ou coletivo, como um encontro das várias ciências, e diz respeito ao conhecimento geral do homem. É também meio de criação de significados através das trajetórias antropológicas das imagens, resultado do intercâmbio incessante entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas do meio físico (Pitta, 2005). Adere ainda à tradição dos estudos do platonismo, que, embora suplantada na cultura ocidental pela leitura racionalista aristotélica, defende a “realidade” da imaginação criadora e libertadora no homem, considerada pela Razão como um espécie de “louca” da casa do Espírito (Bachelard, 2003, Durand, 2002).
De maneira apressada, são apresentados aqui alguns termos fundamentais para a concepção da convergência dos símbolos, ou a maneira como se organizam, de acordo com os estudos do Imaginário. Concebe-se a imagem como capacidade humana de simbolizar e criar significados, função impossível de realizar por outros meios e é posterior ao schème, que é a tendência geral dos gestos (a verticalidade da postura: subida, divisão; gesto de engolir: descida; e do aconchego na intimidade: o primeiro alimento do homem sendo o leite materno, a amamentação). O arquétipo é a imagem primeira, de caráter coletivo e inato e junção entre o imaginário e os processos racionais, enquanto o símbolo é todo signo concreto evocando, por alguma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido (Pitta, 2005).  Para a autora os símbolos “são visíveis nos rituais, nos mitos, na literatura, nas artes plásticas (...), enquanto o mito é “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e schèmes que tende a compor um relato, ou seja, que se apresenta sob a forma de história”.
O trajeto antropológico das imagens é dado a partir das trocas já mencionadas e dependem das polarizações encontradas nas mais diversas comunidades, que, embora mantendo-se constantes os schèmes e os arquétipos, assumirão símbolos para suas próprias representações desses schèmes e arquétipos. Assim, na perspectiva dos estudos do imaginário, para além do paradigma da racionalidade ocidental, consideram-se as imagens e a imaginação, bem como os sonhos e os devaneios, como “realidades” para o homem e as culturas. Esse campo de estudo delimita as imagens em dois “regimes”: o das antíteses, pelo quail o enfrentamento do tempo” (regime diurno das imagens) e o dos eufemismos, pelo quaia se da as tentativas de “convivência com o tempo” (regime noturno das imagens) (Durand, 2002).

O Sertão imaginário de Riobaldo/João Guimarães Rosa

Asfalto: rio estranho na Chapada

Em um dos prefácios de Tutaméia, João Guimarães Rosa anota, depois de epígrafe, em que se lê que “A matemática não pôde progredir, até que os hindus inventassem o zero”: “Meu duvidar é da realidade sensível aparente – talvez só um escamoteio das percepções (...) Porém procuro cumprir, (...), empírico modo ensina: disciplina e paciência. Acredito ainda em outras coisas, no boi, por exemplo, mamífero voador, não terrestre” (p.148). O autor coloca o leitor exatamente no lugar desejado: na atitude de suspensão do paradigma da racionalidade (“realidade sensível aparente”, “empírico modo”), e de abertura para a imaginação (“boi, mamífero voador, não terrestre”). Para acrescentar, logo em seguida: “Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza”. No balanço do pêndulo entre o racionalismo objetivo aristotélico e o idealismo subjetivo platônico, restam claros um convite e a posição de fala do autor/narrador.
Atendendo ao chamamento, neste ponto do texto procura-se inventariar as imagens que dão suporte à construção da narrativa de Grande sertão: veredas e que deverão explicar o esforço de significação e construção do universo da vida de Riobaldo, por meio de sua linguagem, pelo ato de contar a própria vida. Pela forma como está estruturada a narrativa, o que se tem é o convite de Riobaldo para que o leitor viva, de novo, com ele, a vida dele, para que ela passe a ter sentido para ele mesmo a partir do reconhecimento de sua objetividade pelo interlocutor/leitor. O sertão de Riobaldo não é um lugar, mas um estado de alma, um sentimento das coisas, uma vivência do espaço. E o tempo está aprisionado pelo espaço vivido.
Esse espaço está povoado de imagens. Inicialmente, e tomando as palavras de Pitta (2005), pode-se verificar a presença da “imagem do cangaceiro [jagunço] (afetividade e experiência regionais), ligada ao arquétipo do herói (universal) ligado ao schème da divisão (entre o bem e o mal, por exemplo)” (p.22), para sublinhar o schème da união, da busca da ordem, que poderá vir da explicação obtida por meio da “ordenação”.  Por outro lado, o que Riobaldo narra não é exatamente uma sequência de fatos, mas a “matéria vertente”, ou seja, a forma transformável, que pode se mudar em seu contrário. Por exemplo, ao caos do início da narrativa se seguirá a ordem dos 11 causos reunidos e contados segundo a estrutura tradicional das narrativas. A ordem não é dada pelo tempo, mas pela vivência do espaço e expressa linguisticamente o esforço do homem para dar sentido à própria vida.
A topografia imaginária do sertão de Riobaldo/Guimarães Rosa deverá começar pela  imagem do Rio São Francisco, símbolo do tempo, que dividiu a vida do personagem em duas partes, e representa ainda a luta contra o tempo, pela sua superação, por meio da memória e da imaginação. Riobaldo chama de “rios bonitos” aqueles que nascem no oeste e correm para o leste, são rios “orientados” para a luz, para o conhecimento, o esclarecimento, da sombra para a luz. O espaço do labirinto, da travessia. Da travessia do próprio texto ou da própria vida. Na construção do sentido, o próprio JGR enumera e sinaliza, em correspondência com o seu tradutor italiano: a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos e d) valor metafísico-religioso: 4 pontos (Utéza, 1994). Apenas o ponto inicial da trajetória das imagens deve ser buscado, então, nas águas dos rios, nos buritis que as cercam, grotões, nos paredões, nos descampados dos chapadões, nas relações que operam no “sistema jagunço” e nas formas da linguagem. A maior parte está no oculto. Buriti sabe de muita coisa. O homem sabe quase nada: só umas raríssimas pessoas e, ainda assim, só umas veredazinhas.

Referências bibliográficas

AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do oeste no Brasil e nos EUA. In: Pimentel e Amado (Orgs.). Passando dos Limites. Goiânia, Editora da UFG, 1995.
ARAUJO, Heloisa Vilhena de. O Roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim, 1996.
ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões. Bauru: EDUSC, 2000.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
____________. A psicanálise do fogo. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
____________. O Novo espírito científico. Tradução Juvenal Hahne Junior. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.
____________. A Formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BOLLE, Willi. Grandesertão.br. São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34, 2004.
COSTA SILVA, René Marc da. “O Pensamento social brasileiro e a (in)visibilidade do não branco no sertão”. Brasília. Inédito, 2010.
DURAND, Gilbert. As Estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
____________. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
LAMBERT, Jacques. Os Dois brasis. São Paulo. Companhia Editora Nacional: 1970.
LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ UCAM, 1999.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. São Paulo: Boitempo, 2003.
PITTA, Danielle Perin Rocha. Introdução à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Ataântica, 2005.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Organização, tradução e apresentação Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
____________. Cenas da enunciação. São Paulo, Cortez, 2008.
ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1979.
_____________. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Grande sertão: veredas – roteiro de leitura. Rio de Janeiro: TopBooks, 2008.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SENA, Selma. Interpretações dualistas do Brasil. Goiânia: Editora da UFG, 2003.
TURCHI, Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília: Editora da UnB, 2003.
UTÉZA, Francis. JGR: Metafísica do grande sertão. São Paulo: EdUSP, 1984.
VIDAL E SOUZA, Candice. A Pátria geográfica: sertão e litoral no pensamento social brasileiro. Goiânia: Editora UFG, 1997.

Zeus está aqui.


                                          Um pouco mais de um mês depois do adeus que não pude dar a Zeus (além do simbólico "aZeus" que escrevi aqui em 17 de janeiro), retorno a esta página. Talvez interessasse a algumas pessoas saber da riqueza das grandes perdas e dos preciosos encontros/reencontros, tudo no mesmo tempo (ou no mesmo espaço vivido com intensidade, por fim, indizível), mas recolho todos os retalhos e sigo com eles. Memória, história, esquecimento. A história de Zeus, cachorro criado por minha amada e por mim, significa ainda a possibilidade da doçura nesta vida. Todos os dias, a qualquer hora do dia (ou da noite) Zeus estava pronto e nos convidava a brincar. Acho que pelo simples prazer que ele tinha em nos ver felizes. Sigo, entre outros poucos motivos, porque ainda consigo engolir seco.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A terceira margem do rio II

"Hora da palavra, hora de não dizer nada" JGR e Milton Nascimento.
___

"Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
"Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o cachimbo.
"Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
"Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
"Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinha Vitória retirava os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
"A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
"Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinha Vitória tinha deixado o fogo  apagar-se muito cedo.
"Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia a mão de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes" Graciliano Ramos, Vidas Secas (Fragmento).

___


'Mas estes versos não cantei pra ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso - o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia" J.G.Rosa, Grande sertão: veredas, p.333-334.
___

A Zeus. 
Adeus.
16 de janeiro de 2011.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Descanso em Seabra-BA

Quanta beleza na Chapada Diamantina! Quanta Riqueza! Quanta Borboleta! Quanta exclamação!!