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Residências na cidade de Serra das Araras-MG |
La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers de forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.
Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste como la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.
Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
– Et d'autres, corrompus, riches et triomphants.
Ayant l'éxpansion des choses infinis,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.
CHARLES BAUDELAIREAS TRAJETÓRIAS ANTROPOLÓGICAS DAS IMAGENS: O SERTÃO COMO REGIÃO IMAGINADA E MÍTICA.
Introdução
Neste paper pretende-se esboçar uma primeira tentativa de ordenação dos conceitos relacionados à construção do espaço-sertão como região imaginada, a partir, principalmente, de três pontos de vista: i) o pensamento social brasileiro, dos chamados intérpretes do Brasil (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Claude Lévi-Straus e Roger Bastide, entre outros) até estudos mais recentes, de Mariza Peirano, Nísia Trindade, Candice Vidal e Souza, Selma Sena, entre outros); ii) os estudos do imaginário, especialmente com base em Gilbert Durand e iii) a narrativa literária de João Guimarães Rosa, especialmente o romance Grande sertão: veredas, além dos prefácios de Tutaméia e fragmentos de entrevistas concedidas pelo autor a Günter Lorenz e ao seu tradutor italiano.
Os conceitos serão aplicados à constelação de imagens relacionadas ao espaço-sertão enquanto narrativa, numa linha interpretativa de Grande sertão: veredas que, segundo Wille Bolle se alinha com o que ele chama de “interpretações esotéricas, mitológicas e metafísicas” (BOLLE, 2004, p.20). Assim, tenta-se aqui um alinhamento com os precursores dessa tradição de leitura: Consuelo Albergaria (O Bruxo da linguagem no grande sertão, 1977), Francis Utéza (JGR: Matafísica do grande sertão, 1994), Kathrin Holzermayr Rosenfield (Desenveredando Rosa: ensaios sobre a obra de J.G.Rosa, 2006 e Grande sertão: veredas – roteiro de lietura, 2008) e Maria Zaira Turchi (Literatura e antropologia do imaginário, 2003). Este alinhamento é preliminar e não deve de forma alguma excluir outras perspectivas de leituras, especialmente aquela identificada por Bolle (2004) como “interpretações, sociológicas, históricas e políticas”, como já se mencionou no parágrafo anterior.
Pretende-se então propor uma leitura do “sertão” roseano como espaço imaginado e definir seus limites, as trajetórias antropológicas das imagens que o constituem, definir seus limites imaginários, origens míticas e materiais, sempre a partir da fala do ex-jagunço Riobaldo e, com apoio do método da mitocrítica e da mitanálise, propor uma topoanálise imaginária desse espaço.
O Sertão no pensamento social brasileiro
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Residências na cidade de Serra das Araras-MG |
Aqui são considerados quatro momentos igualmente importantes para a compreensão das dimensões do “sertão”: a) o dos primeiros relatos de viajantes, de onde derivam os primeiros registros do termo, geralmente em oposição ao litoral; b) o dos textos literários, em que o sertão aparece, especialmente a partir das produções do Romantismo brasileiro, como espaço nacional primordial; c) os ensaios dos chamados intérpretes do Brasil, já mencionados e que, num maneirismo entre literatura e “ciência”, marcaram a leitura da brasilidade até principalmente os anos finais da primeira metade do século XX e d) o do discurso propriamente sociológico produzido após a consolidação das Ciências Sociais no Brasil, a partir da Universidade de São Paulo, com apoio de professores estrangeiros, como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, entre outros, dos quais foram alunos Florestan Fernandes, Antonio Candido, entre outros.
Estudos recentes, dos quais se podem destacar os trabalhos de Mariza Peirano, Nísia Trindade Lima, René Marc, Selma Sena, Candice Vidal e Souza, Eduardo Viveiros de Castro e Roberto DaMatta, entre outros, apontam para uma recorrência nessas produções intelectuais daqueles quatro momentos históricos: a interpretação dualista da brasilidade, que estaria fundada na construção da necessidade de afirmação de um determinado discurso sobre o que seria, ou deveria ser, o Brasil. Na construção desse discurso hegemônico, que parte da oposição entre litoral e interior e se desdobra em outras, como civilização/barbárie, cultura/natureza, urbano/rural, cidade/campo, entre outras, além do alinhamento com a tradição do processo civilizatório ocidental, verifica-se a segregação ou isolamento de determinadas áreas do território, compreendidas como não representativas do Brasil que se queria projetar. Assim, o sertão é caracterizado como paisagem inóspita, despovoada, lugar de violência e atraso destinado ao desaparecimento ou à superação pelo avanço do “progresso” ou da “civilização”. Para Sena (2003), essa visão dualista concebia, finalmente, “a ideia de que o Brasil comportava em seu interior duas sociedades diferentes e antagônicas” (Sena, 2003).
Essas interpretações dualistas do Brasil, embora mantidas mesmo após o amadurecimento e a consolidação das Ciências Sociais no Brasil, começaram a sofrer críticas, especialmente a partir dos anos de 1970 e 1980, quando produções de estudiosos do assunto tentavam demonstrar o caráter ideológico e a insuficiência interpretativa dos argumentos daquela tradição. Nessa nova perspectiva, o “sertão” passa a ser concebido como personagem de um mito da brasilidade, que serviu como necessário em determinado momento à sua interpretação, mas que exigia a sua superação por postulados interpretativos que , de certa forma, corrigissem a ideia dos “dois brasis”. De acordo com Sena (2003), a interpretação dualista foi desmontada inicialmente pela economia e pela sociologia: “agora o atrasado e o moderno não se justapunham numa relação estanque, mas se articulavam estruturalmente, de sorte que o atraso passava a ser condição de reprodução do moderno, ao invés de obstáculo à sua constituição” (Sena, 2003, p.29).
Essas formulações contemporâneas sinalizam para a necessidade de concepção integral do Brasil como uma multiplicidade intercambiável de fatores e aspectos que podem ser encontrados em qualquer parte do território. Aspectos como a violência podem sem encontrados tanto na cidade como no campo, restando impossível e desnecessária essa marcação dicotômica de lugares, enfim complementares e “inventados” discursivamente, com base na racionalidade ocidental, talvez incapaz de criar significados sem recorrer ao mito.
O Sertão nos campos da Teoria do Imaginário
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Andalécio cultivou terras à margem do Rio São Francisco |
Preliminarmente, este texto i) parte do pressuposto de que o homem é um animal simbólico e ii) considera o imaginário, individual ou coletivo, como um encontro das várias ciências, e diz respeito ao conhecimento geral do homem. É também meio de criação de significados através das trajetórias antropológicas das imagens, resultado do intercâmbio incessante entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas do meio físico (Pitta, 2005). Adere ainda à tradição dos estudos do platonismo, que, embora suplantada na cultura ocidental pela leitura racionalista aristotélica, defende a “realidade” da imaginação criadora e libertadora no homem, considerada pela Razão como um espécie de “louca” da casa do Espírito (Bachelard, 2003, Durand, 2002).
De maneira apressada, são apresentados aqui alguns termos fundamentais para a concepção da convergência dos símbolos, ou a maneira como se organizam, de acordo com os estudos do Imaginário. Concebe-se a imagem como capacidade humana de simbolizar e criar significados, função impossível de realizar por outros meios e é posterior ao schème, que é a tendência geral dos gestos (a verticalidade da postura: subida, divisão; gesto de engolir: descida; e do aconchego na intimidade: o primeiro alimento do homem sendo o leite materno, a amamentação). O arquétipo é a imagem primeira, de caráter coletivo e inato e junção entre o imaginário e os processos racionais, enquanto o símbolo é todo signo concreto evocando, por alguma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido (Pitta, 2005). Para a autora os símbolos “são visíveis nos rituais, nos mitos, na literatura, nas artes plásticas (...), enquanto o mito é “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e schèmes que tende a compor um relato, ou seja, que se apresenta sob a forma de história”.
O trajeto antropológico das imagens é dado a partir das trocas já mencionadas e dependem das polarizações encontradas nas mais diversas comunidades, que, embora mantendo-se constantes os schèmes e os arquétipos, assumirão símbolos para suas próprias representações desses schèmes e arquétipos. Assim, na perspectiva dos estudos do imaginário, para além do paradigma da racionalidade ocidental, consideram-se as imagens e a imaginação, bem como os sonhos e os devaneios, como “realidades” para o homem e as culturas. Esse campo de estudo delimita as imagens em dois “regimes”: o das antíteses, pelo quail o enfrentamento do tempo” (regime diurno das imagens) e o dos eufemismos, pelo quaia se da as tentativas de “convivência com o tempo” (regime noturno das imagens) (Durand, 2002).
O Sertão imaginário de Riobaldo/João Guimarães Rosa
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Asfalto: rio estranho na Chapada |
Em um dos prefácios de Tutaméia, João Guimarães Rosa anota, depois de epígrafe, em que se lê que “A matemática não pôde progredir, até que os hindus inventassem o zero”: “Meu duvidar é da realidade sensível aparente – talvez só um escamoteio das percepções (...) Porém procuro cumprir, (...), empírico modo ensina: disciplina e paciência. Acredito ainda em outras coisas, no boi, por exemplo, mamífero voador, não terrestre” (p.148). O autor coloca o leitor exatamente no lugar desejado: na atitude de suspensão do paradigma da racionalidade (“realidade sensível aparente”, “empírico modo”), e de abertura para a imaginação (“boi, mamífero voador, não terrestre”). Para acrescentar, logo em seguida: “Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza”. No balanço do pêndulo entre o racionalismo objetivo aristotélico e o idealismo subjetivo platônico, restam claros um convite e a posição de fala do autor/narrador.
Atendendo ao chamamento, neste ponto do texto procura-se inventariar as imagens que dão suporte à construção da narrativa de Grande sertão: veredas e que deverão explicar o esforço de significação e construção do universo da vida de Riobaldo, por meio de sua linguagem, pelo ato de contar a própria vida. Pela forma como está estruturada a narrativa, o que se tem é o convite de Riobaldo para que o leitor viva, de novo, com ele, a vida dele, para que ela passe a ter sentido para ele mesmo a partir do reconhecimento de sua objetividade pelo interlocutor/leitor. O sertão de Riobaldo não é um lugar, mas um estado de alma, um sentimento das coisas, uma vivência do espaço. E o tempo está aprisionado pelo espaço vivido.
Esse espaço está povoado de imagens. Inicialmente, e tomando as palavras de Pitta (2005), pode-se verificar a presença da “imagem do cangaceiro [jagunço] (afetividade e experiência regionais), ligada ao arquétipo do herói (universal) ligado ao schème da divisão (entre o bem e o mal, por exemplo)” (p.22), para sublinhar o schème da união, da busca da ordem, que poderá vir da explicação obtida por meio da “ordenação”. Por outro lado, o que Riobaldo narra não é exatamente uma sequência de fatos, mas a “matéria vertente”, ou seja, a forma transformável, que pode se mudar em seu contrário. Por exemplo, ao caos do início da narrativa se seguirá a ordem dos 11 causos reunidos e contados segundo a estrutura tradicional das narrativas. A ordem não é dada pelo tempo, mas pela vivência do espaço e expressa linguisticamente o esforço do homem para dar sentido à própria vida.
A topografia imaginária do sertão de Riobaldo/Guimarães Rosa deverá começar pela imagem do Rio São Francisco, símbolo do tempo, que dividiu a vida do personagem em duas partes, e representa ainda a luta contra o tempo, pela sua superação, por meio da memória e da imaginação. Riobaldo chama de “rios bonitos” aqueles que nascem no oeste e correm para o leste, são rios “orientados” para a luz, para o conhecimento, o esclarecimento, da sombra para a luz. O espaço do labirinto, da travessia. Da travessia do próprio texto ou da própria vida. Na construção do sentido, o próprio JGR enumera e sinaliza, em correspondência com o seu tradutor italiano: a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos e d) valor metafísico-religioso: 4 pontos (Utéza, 1994). Apenas o ponto inicial da trajetória das imagens deve ser buscado, então, nas águas dos rios, nos buritis que as cercam, grotões, nos paredões, nos descampados dos chapadões, nas relações que operam no “sistema jagunço” e nas formas da linguagem. A maior parte está no oculto. Buriti sabe de muita coisa. O homem sabe quase nada: só umas raríssimas pessoas e, ainda assim, só umas veredazinhas.
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